Incêndio
“Race de Caïn, au ciel monte, |
Percebia algo diferente, algo novo no ar. O barulho da cidade lá fora fazia as vigas tremerem; ressoava em cada porta de armário, cada parede lisa, cada espelho. Ressoava até em seu corpo: e Ele era uma caixa acústica e o barulho lhe tomava conta, irresistível. Tantas vozes remoendo drama; solidão. Tantos ecos de sofrimento. Fogo.
Assim que se curvou para atar os nós dos sapatos amotinados, assim que dobrou seu corpo gigantesco para calar-lhes, as chamas irromperam de todos os lados e adentraram-lhe a cabeça de mármore. Ele estacou, surpreso, e se perdeu em memórias: lembrou de remotos momentos em que, sentado num trono próximo ao lago, torturava os incêndios distantes do campo – as cores eram tão vivas, tão lúcidas, tão proféticas.
Incêndios do deus-fogo, o deus rubro, deus cor-de-sangue: o anticristo, o Animal. Mais poderoso até do que o próprio Pai – mais forte do que aquela cabeça de pedra, aquela velha sentada engordando o palácio de ouro – enquanto fora, os deuses-diabo morriam de fome, gritando e gritando, por mais que parecesse insuficiente. Mas agora era tempo de vingança.
O Titã se ergueu para reavivar seu Deus de tristeza mas, deformado pela visão turva de calor, não pôde reconhecer. Percebia o erro. O ideal desmoronava, e sua imagem já não era mais ela mesma, se transformava – Ele sentia isso, regozijando.
Havia a velha imagem fria e sentada, ressonando.
Havia a nova imagem-vulto encarnada lá fora, gritando.
O Pai, cercado de leões, não era forte o bastante para impedir. Estava na cama, injuriado, exclamando palavras obscenas e mexendo muito a boca. Falava de uniformes azuis, de fábricas e de jantares; de progresso! de ciência! sonhos loucos de megalomaníaco. Mas tudo já era chama, e o palácio não suportaria. Um incêndio. O Papa tocava violino e tentava se afirmar; lembrou os cavalos do reino e os dias de glória. Exaltou o lago, nostálgico. Vangloriou-se de quanta inspiração já findara ali. Mentiras.
Era um Czar bêbado: mas não podia mais, havia fogo por todo o prédio, em uma fração de segundo arrebentando a porta de entrada, queimando os enormes jardins de luxo e toda a vila de bonecas. Já não iria agüentar ser césar muito tempo, mesmo sem tudo aquilo. Já gaguejava e não podia mais entender do que se tratava. Os martelos se revoltavam em seus pesadelos, e ele chorava.
O Gigantesco olhou para a des-figura papal reconhecendo, eufórico, um pleno vazio. Nada mais além de cinzas - no meio de tantas outras, no meio de tanto pó asfixiante, tantas pessoas e idéias mortas naquele lago-latrina. Já estava possuído pelo calor: tomou a vela nas mãos a atirou-a no santo já imerso na vodca que o Pai tanto adorava. A imagem ardeu, ardeu, ardeu vida! Era agora tempo dos novos sonhos.
O Gigantesco já tinha outros em seus pensamentos. Outros jovens em sua cabeça. Os pés haviam tomado o corpo, e balançavam tudo. Era a morte carregando uma foice. Era o anticristo. Era vermelho.
Um comentário:
Nossa! Gostei! O projeto está ficando legal... Aliás, achei todas as versões bem interessantes. E o André se acha bacaninha explicitando citações antes do texto, ein? ein? hahahah.
Léo está trabalhando em um texto que está (até o presente momento) deveras bom. E eu não tenho feito nada - mas provavelmente farei...
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