Incêndio
| “Œdipus solved the riddle, answering that man crawls on all fours in infancy, walks upright on two legs in adulthood, and uses a cane as a third leg in old age.” |
Acordou atrasado e vestiu o uniforme azul. Foi para a fábrica, era dia de sua promoção. Foi congratulado pelo pai, sarcástico. Passou pelo lago, olhou-o nostálgico. Tentou mensurar quanta inspiração já caíra ali.
Entrou no inventário mais uma vez, entre céu, terra e mar – invisível, soluçando algo diferente. Podia sentir o barulho que emanava de todos os poros de seu corpo – cada um uma boca aberta em espasmo, a berrar e secar os lagos de lágrimas.
Foi lento: começou dos pés, e eles sambavam e dançavam feito chuva tamborilando, desmoronava. O sublime do que estava para acontecer: fogo! Assim que se curvou para atar os nós dos sapatos amotinados, enrolá-los em tiras gélidas de castigo; assim que se dobrou as chamas esticaram suas longas línguas e enrolaram-lhe as faces úmidas.
Começou a partir de seus pés, e ele achou bonito – ha! ingênuo... – e se lembrou dos remotos momentos da infância em que torturava os sonhos rubros ao rolar no orvalho do jardim próximo ao lago. Mastigava lentamente um longo incêndio, distante, floresta por engolir – as cores eram tão vivas, suas vozes tão lúcidas, tão intensas, suas profecias tão verdadeiras.
Deformou-se: no espelho, já não pôde reconhecer. O mais alto grito seria resultado da epifania final. Seus leões não eram fortes o bastante para impedir. Pensou em mergulhar na latrina, se afogar no ralo.
Mas não havia tempo, tudo já era chama e o banheiro, moradia de tantos anos, logo não suportaria. Tentou de todas as formas se concentrar; invocou os cavalos-marinhos invadindo o reino, visualizou a ausência de cavaleiros, tentou preenchê-la, espreitar a humilhação e a glória. O vaso!
Enfiou o pé: faltava água. O pai não pagara as contas do mês. E impossível desviar daquela língua ferina. Não conseguia segurar, saiu sacolejando – deu por si já montado nela, liderando o frenesi de pensamentos: havia fogo espraiando-se pela casa e, em fração de segundos, arrebentando todos os portões, atingindo o jardim, a vila, o lago, a floresta. Sua vida ardeu, ardeu, ardeu vida! Resposta ao enigma! Mas então cessou: plena e vazia, fumaça seca. Nada mais além de cinzas de erupção. Uma pedra, onde jazia alguém.
O pai jantou-a gargalhando, rei do cosmos. E tossiu.
Quisera antes; e tentara.
Assim arrombaram-se os portões e entraram milhões de cavalos sem seus homens. E era um reino enorme e detalhado: cada viga de madeira, cada feixe de palha. Tão detalhado que não enumero os pormenores ou enfeites desaguados em arquitetura barroca sedenta de lágrimas. O único indispensável leria o lago. Já mencionei as lágrimas? Lágrimas felinas, se em vez de escorrer das margens saltavam, montavam nos cavalos e os domavam. O estouro mergulhava nas águas puras e se afogava. Consolava. O silêncio como se subsistisse encarcerado em todas aquelas paredes transparentes de vidro.
Cerrou os olhos e gritou o mais alto que pôde, por mais que parecesse insuficiente. Mas o choro lhe engasgava a garganta. Permaneceu sentado e voltou a pensar nos cavalos de quatro patas que acabavam de invadir o reino. A ausência de bravos cavaleiros lhe era perturbadora e humilhante. Como era possível? Voltou a pensar e continuar a criação da incômoda situação. Sem resposta. E assim ficou por horas, esperando que a batalha acabasse e ele, semi-morto, vivenciasse glória, realeza.
Não pôde. Bateram na porta e o fizeram sair sem que pestanejasse. Jante, infeliz! A língua afiada de seu pai estalava. E assim foi feito, e ele comeu seus próprios filhos, e o reino já ruínas. Crianças não conseguem discutir com o pai. Durma! E a palavra relampejou cortando-o, tanto que sangrou. Saiu cambaleando direto para o quarto. Quando se viu só no escuro, levantou-se derrubando o que vinha pela frente e correu em direção ao banheiro.
Sentou-se onde já lhe era de costume e reabriu as páginas. Continuou a desfiar o enredo e desta vez surgiam novos personagens. Havia dias de sol gelados, dias úmidos de nuvens e até mesmo dias de neve fina. Anos corriam monótonos em suas histórias e em seus dias sem sentido, sem solução.
Até o dia em que o pai, figura detestável, agarrou-o com suas palavras em brasa. Todo o rosto do menino foi encoberto pela língua enorme que o enrolava. Arrume um emprego! Os filhos, os pobres filhos, mesmo que jovens (e pálidos e brancos e frios de neve). Os filhos não podem não conseguem não devem discutir com o pai.
Como se não bastasse, sentou-o na grama, à beira do lago, e começou a retirá-los, um por um, cada um dos carrapatos. E a cada puxada, o jovem sentia que não havia mais motivos para separar a ebulição que era antes proveniente na ação externa dos carrapatos da interna, a da necessidade inexorável de criação. Escassez. E o pai engolia os carrapatos de volta. Daria-os para outro, outro que não chorasse tanto. Os carrapatos não gostam de lágrimas: gostam de cabeleiras ruivas esvoaçando.
Momentos depois, o pequeno correu para o banheiro em ação desesperada. Buscava exaustivamente as imagens, cada vez mais difíceis. A nitidez com que tudo acontecia em seu pensamento era avassaladora. Descontrolado, bateu a cabeça na parede. Não uma, mas várias vezes. Voltem! Mas não saía voz nenhuma.
Acordou atordoado e sentou-se ao pé da cama. Nada sabia além de pensar. Banheiro, solidão, silêncio, carruagens e nenhum grito.
O pai o havia traído.
O pai gargalhou mais. E tossiu.
Rolou no chão sem ar, tossindo. Sua língua descontrolada de tão seca, urgia por água. Não resistiu. Foi ao lago e bebeu.
Da barriga do pai um ruído lento subiu, balançando toda sua carne, e dele já giravam os olhos nas órbitas e seus cabelos espetavam em todas as direções. Súbito, parou, estático, e vomitou os carrapatos todos, vomitou umas crianças, e o menino, que já não era mais criança. O velho pai chorou mudo, e se atirou das muralhas daquele reino fantástico, morrendo na frente do local que por tanto tempo aterrorizara.
O menino-adulto se levantou: foi coroado rei por Tebas, rei pelo cosmo, rei pela fala-fogo, rei artista pelos cavalos selvagens, Poseidon.
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