domingo, 6 de abril de 2008

03.02.02 - Incêndio (Mari)

Incêndio


Tudo era drama; solidão

Entrou no inventário mais uma vez. E foi a primeira que percebeu algo diferente. Podia sentir o barulho emanava de todos os poros de seu corpo proporcionando o momento de felicidade plena. Parecia desmoronar, podia sentir a plenitude do que estava para acontecer. Fogo! Assim que curvou-se para amarrar os sapatos novos, a chama começou a partir de seus pés. Ele achou bonito e se lembrou de remotos momentos da infância em que sentado na pedra próxima ao lago, observava o incêndio, distante, na floresta – e as cores eram tão vivas, tão lúcidas, tão intensas, verdadeiras.
Era o Deus fogo, poderoso, destruidor, temido até pelos mais temidos. Mais poderoso até do que seu próprio pai, podia sentir. Cerrou os olhos e gritou o mais alto que pôde, por mais que parecesse insuficiente. Ali ele podia tudo.
Ergueu-se para visualizar sua imagem no espelho e, deformado pelo efeito que as lágrimas sortiam em sua visão, não pôde reconhecer. A vela crepitava em cima da pia e o mais alto grito de toda sua vida seria resultado da epifania final, mas ainda não bastaria.
Percebeu o erro. Se depois me fosse confidenciado, eu espalharia. Faria mil pedaços e cortaria em pequenas tiras – daquelas que se medem cuidadosamente. E se ainda que não me fosse permitido, distribuiria. Exatamente como aconteceu.

Havia outra imagem-vulto no espelho.

Seus leões não tinham sido fortes o bastante para impedir. Sem arrependimentos. Pensou em mergulhar na latrina e ser derrotado pelo ralo. Seu pai estava de pé ao seu lado murmurando palavras para ele obscenas e mexendo muito a boca. Falava de um uniforme azul, de fábricas e de jantares. Então, tudo já era chama e o banheiro, moradia de tantos anos, logo não suportaria. Tentou de qualquer forma se concentrar; lembrou-se dos cavalos dos reinos e dos dias de glória. Pensou no lago, nostálgico. Tentou mensurar quanta inspiração já saíra de lá. Errando de novo. Quando já não pôde mais, havia fogo por toda a casa e em uma fração de segundos, arrebentou a porta de entrada da casa, atingindo o jardim e toda a vila. Já não poderia agüentar muito tempo. O pai berrava e não mais podia entender do que se tratava. Olhava aquela des-figura no espelho imaginando, eufórico, um pleno vazio. Nada mais além de cinzas - no meio das tantas outras, no meio de tanto pó, tantas coisas já mortas naquele banheiro-casa-vila. Tomou a vela nas mãos a atirou-a no colchão já imerso na Vodka que seu pai tanto adorara. Voltou, enfim, a sonhar.

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