Incêndio
Quisera antes; e pudera.
Se depois me fosse confidenciado, eu espalharia. Faria mil pedaços e cortaria em pequenas tiras – daquelas que se medem cuidadosamente. E se ainda que não me fosse permitido, distribuiria. Exatamente como aconteceu.
Assim arrombaram-se os portões e entraram milhões de cavalos sem seus homens. E era um reino enorme e detalhado. Tão detalhado que não enumero os pormenores ou enfeites desaguados em arquitetura barroca típica de lágrimas. O único indispensável leria o lago. O menino observava, porém relapso. Já mencionei as lágrimas? O silêncio como se existisse encarcerado em todas aquelas paredes de janela única.
Andou até a porta da casa e entrou; era sua. Caminhou rumo ao predileto; o ritual. Sentou-se no vértice do cômodo, onde só lhe era permitido ouvir os ruídos distantes dos senhores distantes que distantes passavam em suas carruagens.
A banheira, a latrina, as paredes, a janela, ele e os pensamentos. Onde estavam os óculos? Sem isso, nada.
Cerrou os olhos e gritou o mais alto que pôde, por mais que parecesse insuficiente. Ali ele podia tudo. Permaneceu sentado e voltou a pensar nos cavalos que acabaram de invadir seu reino. A ausência de bravos cavaleiros lhe era perturbadora e humilhante. Como ousavam? Voltou a pensar e continuar a criação da incômoda situação. E assim ficou por horas, até que a batalha acabasse e ele, quase morto, vivenciasse glória.
Não pôde. Bateram na porta e o fizeram sair sem que pestanejasse. Jante, infeliz! E assim foi feito. Crianças não podem discutir com o pai. Durma! E saiu temeroso de punição, direto para o quarto. Quando se viu só no escuro, levantou-se derrubando o que vinha pela frente e correu em direção ao banheiro.
Sentou-se onde já lhe era de costume e reabriu as páginas. Continuou o enredo e desta vez surgiram novos personagens. Havia dias de sol, dias de tempestades e até mesmo dias de neve. Anos corriam em suas histórias e em seus dias.
Até que surgiram os carrapatos. E ele sentia estranhos movimentos entre os cabelos, mas eram tantos pensamentos novos e incontroláveis dentro da cabeça que não conseguia distinguir as sensações. Até o dia em que o pai, figura detestável, pegou a cabeleira e cortou-a sem pudor.
Como se não bastasse, sentou-se na cama, acomodando a cabeça do que antes não passava de um menino entre as pernas e começou a retirá-los, um por um. E a cada puxada, o jovem sentia que não havia mais motivos para separar a ebulição que antes era proveniente da ação externa dos carrapatos da interna, fruto da necessidade inexorável de criação. Escassez.
Momentos depois, correu para o banheiro em uma ação desesperada. Buscava exaustivamente as imagens, cada vez mais difíceis. A nitidez com que tudo acontecia em seu pensamento era precária. Descontrolado, bateu a cabeça na parede. Não uma, mas várias vezes. Voltem!
Acordou atordoado e sentou-se ao pé da cama. Arrume um emprego! Os filhos, mesmo que jovens, não podem discutir com o pai. Nada sabia além de pensar. Banheiro, solidão, silêncio, carruagens e um grito.
Acordou atrasado e vestiu o uniforme. Foi para a fábrica, era o dia de sua promoção. Foi congratulado pelo pai. Passou pelo lago, olhou-o nostálgico. Tentou mensurar quanta inspiração já saíra de lá.
Tudo era divisão; drama.
Entrou no inventário mais uma vez. E foi a primeira que percebeu algo diferente. Podia sentir o barulho emanava de todos os poros de seu corpo proporcionando o momento de felicidade plena. Parecia desmoronar, podia sentir a plenitude do que estava para acontecer. Fogo! Assim que curvou-se para amarrar os sapatos novos, a chama começou a partir de seus pés. Ele achou bonito e se lembrou de remotos momentos da infância em que sentado na pedra próxima ao lago, observava o incêndio, distante, na floresta – e as cores eram tão vivas, tão lúcidas, tão intensas, verdadeiras.
Ergueu-se para visualizar sua imagem no espelho e, deformado, não pôde reconhecer. O mais alto grito de toda sua vida seria resultado da epifania final. Percebeu o erro. Seus leões não tinham sido fortes o bastante para impedir. Sem arrependimentos. Pensou em mergulhar na latrina e ser derrotado pelo ralo.
Não havia tempo, tudo já era chama e o banheiro, moradia de tantos anos, logo não suportaria. Tentou de qualquer forma se concentrar; lembrou-se dos cavalos invadindo o reino, visualizou a ausência de cavaleiros, a humilhação e a glória. Errando de novo. Quando já não pôde mais, havia fogo por toda a casa e em uma fração de segundos, arrebentou a porta de entrada da casa, atingindo o jardim e toda a vila. Instantes depois, cessou: pleno e vazio. Nada mais era além de cinzas - no meio das tantas outras.
Se depois me fosse confidenciado, eu espalharia. Faria mil pedaços e cortaria em pequenas tiras – daquelas que se medem cuidadosamente. E se ainda que não me fosse permitido, distribuiria. Exatamente como aconteceu.
Assim arrombaram-se os portões e entraram milhões de cavalos sem seus homens. E era um reino enorme e detalhado. Tão detalhado que não enumero os pormenores ou enfeites desaguados em arquitetura barroca típica de lágrimas. O único indispensável leria o lago. O menino observava, porém relapso. Já mencionei as lágrimas? O silêncio como se existisse encarcerado em todas aquelas paredes de janela única.
Andou até a porta da casa e entrou; era sua. Caminhou rumo ao predileto; o ritual. Sentou-se no vértice do cômodo, onde só lhe era permitido ouvir os ruídos distantes dos senhores distantes que distantes passavam em suas carruagens.
A banheira, a latrina, as paredes, a janela, ele e os pensamentos. Onde estavam os óculos? Sem isso, nada.
Cerrou os olhos e gritou o mais alto que pôde, por mais que parecesse insuficiente. Ali ele podia tudo. Permaneceu sentado e voltou a pensar nos cavalos que acabaram de invadir seu reino. A ausência de bravos cavaleiros lhe era perturbadora e humilhante. Como ousavam? Voltou a pensar e continuar a criação da incômoda situação. E assim ficou por horas, até que a batalha acabasse e ele, quase morto, vivenciasse glória.
Não pôde. Bateram na porta e o fizeram sair sem que pestanejasse. Jante, infeliz! E assim foi feito. Crianças não podem discutir com o pai. Durma! E saiu temeroso de punição, direto para o quarto. Quando se viu só no escuro, levantou-se derrubando o que vinha pela frente e correu em direção ao banheiro.
Sentou-se onde já lhe era de costume e reabriu as páginas. Continuou o enredo e desta vez surgiram novos personagens. Havia dias de sol, dias de tempestades e até mesmo dias de neve. Anos corriam em suas histórias e em seus dias.
Até que surgiram os carrapatos. E ele sentia estranhos movimentos entre os cabelos, mas eram tantos pensamentos novos e incontroláveis dentro da cabeça que não conseguia distinguir as sensações. Até o dia em que o pai, figura detestável, pegou a cabeleira e cortou-a sem pudor.
Como se não bastasse, sentou-se na cama, acomodando a cabeça do que antes não passava de um menino entre as pernas e começou a retirá-los, um por um. E a cada puxada, o jovem sentia que não havia mais motivos para separar a ebulição que antes era proveniente da ação externa dos carrapatos da interna, fruto da necessidade inexorável de criação. Escassez.
Momentos depois, correu para o banheiro em uma ação desesperada. Buscava exaustivamente as imagens, cada vez mais difíceis. A nitidez com que tudo acontecia em seu pensamento era precária. Descontrolado, bateu a cabeça na parede. Não uma, mas várias vezes. Voltem!
Acordou atordoado e sentou-se ao pé da cama. Arrume um emprego! Os filhos, mesmo que jovens, não podem discutir com o pai. Nada sabia além de pensar. Banheiro, solidão, silêncio, carruagens e um grito.
Acordou atrasado e vestiu o uniforme. Foi para a fábrica, era o dia de sua promoção. Foi congratulado pelo pai. Passou pelo lago, olhou-o nostálgico. Tentou mensurar quanta inspiração já saíra de lá.
Tudo era divisão; drama.
Entrou no inventário mais uma vez. E foi a primeira que percebeu algo diferente. Podia sentir o barulho emanava de todos os poros de seu corpo proporcionando o momento de felicidade plena. Parecia desmoronar, podia sentir a plenitude do que estava para acontecer. Fogo! Assim que curvou-se para amarrar os sapatos novos, a chama começou a partir de seus pés. Ele achou bonito e se lembrou de remotos momentos da infância em que sentado na pedra próxima ao lago, observava o incêndio, distante, na floresta – e as cores eram tão vivas, tão lúcidas, tão intensas, verdadeiras.
Ergueu-se para visualizar sua imagem no espelho e, deformado, não pôde reconhecer. O mais alto grito de toda sua vida seria resultado da epifania final. Percebeu o erro. Seus leões não tinham sido fortes o bastante para impedir. Sem arrependimentos. Pensou em mergulhar na latrina e ser derrotado pelo ralo.
Não havia tempo, tudo já era chama e o banheiro, moradia de tantos anos, logo não suportaria. Tentou de qualquer forma se concentrar; lembrou-se dos cavalos invadindo o reino, visualizou a ausência de cavaleiros, a humilhação e a glória. Errando de novo. Quando já não pôde mais, havia fogo por toda a casa e em uma fração de segundos, arrebentou a porta de entrada da casa, atingindo o jardim e toda a vila. Instantes depois, cessou: pleno e vazio. Nada mais era além de cinzas - no meio das tantas outras.
Um comentário:
só pra constar: este é o primeiro dos "Incêndios". O início do projeto.
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