segunda-feira, 7 de abril de 2008

05.03.03 - Incêndio (André)


Incêndio



“Race de Caïn, au ciel monte,
Et sur la terre jette Dieu!”
(Baudelaire, Révolte)



Percebia algo diferente, algo novo no ar. O barulho da cidade lá fora fazia as vigas tremerem; ressoava em cada porta de armário, cada parede lisa, cada espelho. Ressoava até em seu corpo: e Ele era uma caixa acústica e o barulho lhe tomava conta, irresistível. Tantas vozes remoendo drama; solidão. Tantos ecos de sofrimento. Fogo.
Assim que se curvou para atar os nós dos sapatos amotinados, assim que dobrou seu corpo gigantesco para calar-lhes, as chamas irromperam de todos os lados e adentraram-lhe a cabeça de mármore. Ele estacou, surpreso, e se perdeu em memórias: lembrou de remotos momentos em que, sentado num trono próximo ao lago, torturava os incêndios distantes do campo – as cores eram tão vivas, tão lúcidas, tão proféticas.
Incêndios do deus-fogo, o deus rubro, deus cor-de-sangue: o anticristo, o Animal. Mais poderoso até do que o próprio Pai – mais forte do que aquela cabeça de pedra, aquela velha sentada engordando o palácio de ouro – enquanto fora, os deuses-diabo morriam de fome, gritando e gritando, por mais que parecesse insuficiente. Mas agora era tempo de vingança.
O Titã se ergueu para reavivar seu Deus de tristeza mas, deformado pela visão turva de calor, não pôde reconhecer. Percebia o erro. O ideal desmoronava, e sua imagem já não era mais ela mesma, se transformava – Ele sentia isso, regozijando.

Havia a velha imagem fria e sentada, ressonando.
Havia a nova imagem-vulto encarnada lá fora, gritando.

O Pai, cercado de leões, não era forte o bastante para impedir. Estava na cama, injuriado, exclamando palavras obscenas e mexendo muito a boca. Falava de uniformes azuis, de fábricas e de jantares; de progresso! de ciência! sonhos loucos de megalomaníaco. Mas tudo já era chama, e o palácio não suportaria. Um incêndio. O Papa tocava violino e tentava se afirmar; lembrou os cavalos do reino e os dias de glória. Exaltou o lago, nostálgico. Vangloriou-se de quanta inspiração já findara ali. Mentiras.
Era um Czar bêbado: mas não podia mais, havia fogo por todo o prédio, em uma fração de segundo arrebentando a porta de entrada, queimando os enormes jardins de luxo e toda a vila de bonecas. Já não iria agüentar ser césar muito tempo, mesmo sem tudo aquilo. Já gaguejava e não podia mais entender do que se tratava. Os martelos se revoltavam em seus pesadelos, e ele chorava.
O Gigantesco olhou para a des-figura papal reconhecendo, eufórico, um pleno vazio. Nada mais além de cinzas - no meio de tantas outras, no meio de tanto pó asfixiante, tantas pessoas e idéias mortas naquele lago-latrina. Já estava possuído pelo calor: tomou a vela nas mãos a atirou-a no santo já imerso na vodca que o Pai tanto adorava. A imagem ardeu, ardeu, ardeu vida! Era agora tempo dos novos sonhos.
O Gigantesco já tinha outros em seus pensamentos. Outros jovens em sua cabeça. Os pés haviam tomado o corpo, e balançavam tudo. Era a morte carregando uma foice. Era o anticristo. Era vermelho.

domingo, 6 de abril de 2008

04.03.03 - Incêndios (Vítor)

Incêndios


Nem tudo era drama, nem solidão.
O menino coroado pelo rei carrapato mergulhou no lago um profundo sono. Já mencionei as lágrimas? Não, porque não havia lágrimas, havia só um lago.
Entrou no inventário mais uma vez. E foi o primeiro que percebeu algo diferente.
Entrou no inventário mais uma vez. E foi a primeira que. Podia sentir o barulho que emanava de todos os poros de seu corpo proporcionando o momento de felicidade plena. Parecia desmoronar, podia sentir a plenitude do que estava para acontecer. Fogo! Assim que curvou-se para amarrar os sapatos novos, a chama começou a partir de seus pés. Ele achou bonito e se lembrou de remotos momentos da infância em que sentado na pedra próxima ao lago, observava o incêndio, distante, na floresta – e as cores eram tão vivas, tão lúcidas, tão intensas, verdadeiras. Podia sentir o barulho que emanava de todos os poros de seu corpo – cada um uma boca aberta em espasmo, a berrar e secar os lagos de lágrimas.
Os filhos, podem, conseguem, devem discutir com o pai. O lago e o espelho. O carrapato no meio. Percebeu o erro. Ter incendiado seu próprio inventário,
E nunca ter gritado o mais alto quanto pode. Porque seus gritos não eram gritos, eram incêndios.
Se depois me fosse confidenciado, eu espalharia. Faria mil pedaços e cortaria em pequenas tiras – daquelas que se medem cuidadosamente. E se ainda que não me fosse permitido, distribuiria. Exatamente como aconteceu. Já mencionei as lágrimas?
Não pôde. Bateram na porta e o fizeram sair sem que pestanejasse. Jante, infeliz! A língua afiada de seu pai estalava. E assim foi feito, e ele comeu seus próprios filhos, e o reino já ruínas. Mas crianças conseguem discutir com o pai. Acordou! E a palavra relampejou cortando-o, tanto que sangrou. Saiu cambaleando direto para o quarto. Quando se viu só no escuro, levantou-se derrubando o que vinha pela frente e correu em direção ao banheiro.
A banheira, a latrina, as paredes, a janela, ele e os pensamentos. Ele estava com os óculos e via perfeitamente. A presença de bravos cavaleiros lhe era perturbadora e humilhante. Como ousavam? Voltou a pensar e continuar a criação da incômoda situação. E assim ficou por horas, até que a batalha acabasse e ele, quase morto, vivenciasse glória.
Fogo! Assim que curvou-se para amarrar os sapatos novos, a chama começou a partir de seus pés. Ele achou bonito. Era o Deus fogo, poderoso, destruidor, temido até pelos mais temidos. Mais poderoso até do que seu próprio pai, podia sentir.
Seu pai estava de pé ao seu lado murmurando palavras para ele obscenas e mexendo muito a boca. Falava de um uniforme azul, de fábricas e de jantares. Então, tudo já era chama e o banheiro, moradia de tantos anos, logo não suportaria. Tentou de qualquer forma se concentrar; lembrou-se dos cavalos dos reinos e dos dias de glória. Pensou no lago, nostálgico. Tentou mensurar quanta inspiração já saíra de lá. Errando de novo. Quando já não pôde mais, havia fogo por toda a casa e em uma fração de segundos, arrebentou a porta de entrada da casa, atingindo o jardim e toda a vila. Já não poderia agüentar muito tempo. O pai berrava e não mais podia entender do que se tratava. Olhava aquela des-figura no espelho imaginando, eufórico, um pleno vazio. Nada mais além de cinzas - no meio das tantas outras, no meio de tanto pó, tantas coisas já mortas naquele banheiro-casa-vila. Naquela vida. Já mencionei as lágrimas?

03.02.02 - Incêndio (Mari)

Incêndio


Tudo era drama; solidão

Entrou no inventário mais uma vez. E foi a primeira que percebeu algo diferente. Podia sentir o barulho emanava de todos os poros de seu corpo proporcionando o momento de felicidade plena. Parecia desmoronar, podia sentir a plenitude do que estava para acontecer. Fogo! Assim que curvou-se para amarrar os sapatos novos, a chama começou a partir de seus pés. Ele achou bonito e se lembrou de remotos momentos da infância em que sentado na pedra próxima ao lago, observava o incêndio, distante, na floresta – e as cores eram tão vivas, tão lúcidas, tão intensas, verdadeiras.
Era o Deus fogo, poderoso, destruidor, temido até pelos mais temidos. Mais poderoso até do que seu próprio pai, podia sentir. Cerrou os olhos e gritou o mais alto que pôde, por mais que parecesse insuficiente. Ali ele podia tudo.
Ergueu-se para visualizar sua imagem no espelho e, deformado pelo efeito que as lágrimas sortiam em sua visão, não pôde reconhecer. A vela crepitava em cima da pia e o mais alto grito de toda sua vida seria resultado da epifania final, mas ainda não bastaria.
Percebeu o erro. Se depois me fosse confidenciado, eu espalharia. Faria mil pedaços e cortaria em pequenas tiras – daquelas que se medem cuidadosamente. E se ainda que não me fosse permitido, distribuiria. Exatamente como aconteceu.

Havia outra imagem-vulto no espelho.

Seus leões não tinham sido fortes o bastante para impedir. Sem arrependimentos. Pensou em mergulhar na latrina e ser derrotado pelo ralo. Seu pai estava de pé ao seu lado murmurando palavras para ele obscenas e mexendo muito a boca. Falava de um uniforme azul, de fábricas e de jantares. Então, tudo já era chama e o banheiro, moradia de tantos anos, logo não suportaria. Tentou de qualquer forma se concentrar; lembrou-se dos cavalos dos reinos e dos dias de glória. Pensou no lago, nostálgico. Tentou mensurar quanta inspiração já saíra de lá. Errando de novo. Quando já não pôde mais, havia fogo por toda a casa e em uma fração de segundos, arrebentou a porta de entrada da casa, atingindo o jardim e toda a vila. Já não poderia agüentar muito tempo. O pai berrava e não mais podia entender do que se tratava. Olhava aquela des-figura no espelho imaginando, eufórico, um pleno vazio. Nada mais além de cinzas - no meio das tantas outras, no meio de tanto pó, tantas coisas já mortas naquele banheiro-casa-vila. Tomou a vela nas mãos a atirou-a no colchão já imerso na Vodka que seu pai tanto adorara. Voltou, enfim, a sonhar.

sábado, 5 de abril de 2008

02.01.01 - Incêndio (André)


Incêndio



“Œdipus solved the riddle, answering that man crawls on all fours in infancy, walks upright on two legs in adulthood, and uses a cane as a third leg in old age.”


Acordou atrasado e vestiu o uniforme azul. Foi para a fábrica, era dia de sua promoção. Foi congratulado pelo pai, sarcástico. Passou pelo lago, olhou-o nostálgico. Tentou mensurar quanta inspiração já caíra ali.
Entrou no inventário mais uma vez, entre céu, terra e mar – invisível, soluçando algo diferente. Podia sentir o barulho que emanava de todos os poros de seu corpo – cada um uma boca aberta em espasmo, a berrar e secar os lagos de lágrimas.
Foi lento: começou dos pés, e eles sambavam e dançavam feito chuva tamborilando, desmoronava. O sublime do que estava para acontecer: fogo! Assim que se curvou para atar os nós dos sapatos amotinados, enrolá-los em tiras gélidas de castigo; assim que se dobrou as chamas esticaram suas longas línguas e enrolaram-lhe as faces úmidas.
Começou a partir de seus pés, e ele achou bonito – ha! ingênuo... – e se lembrou dos remotos momentos da infância em que torturava os sonhos rubros ao rolar no orvalho do jardim próximo ao lago. Mastigava lentamente um longo incêndio, distante, floresta por engolir – as cores eram tão vivas, suas vozes tão lúcidas, tão intensas, suas profecias tão verdadeiras.
Deformou-se: no espelho, já não pôde reconhecer. O mais alto grito seria resultado da epifania final. Seus leões não eram fortes o bastante para impedir. Pensou em mergulhar na latrina, se afogar no ralo.
Mas não havia tempo, tudo já era chama e o banheiro, moradia de tantos anos, logo não suportaria. Tentou de todas as formas se concentrar; invocou os cavalos-marinhos invadindo o reino, visualizou a ausência de cavaleiros, tentou preenchê-la, espreitar a humilhação e a glória. O vaso!
Enfiou o pé: faltava água. O pai não pagara as contas do mês. E impossível desviar daquela língua ferina. Não conseguia segurar, saiu sacolejando – deu por si já montado nela, liderando o frenesi de pensamentos: havia fogo espraiando-se pela casa e, em fração de segundos, arrebentando todos os portões, atingindo o jardim, a vila, o lago, a floresta. Sua vida ardeu, ardeu, ardeu vida! Resposta ao enigma! Mas então cessou: plena e vazia, fumaça seca. Nada mais além de cinzas de erupção. Uma pedra, onde jazia alguém.

O pai jantou-a gargalhando, rei do cosmos. E tossiu.


Quisera antes; e tentara.
Assim arrombaram-se os portões e entraram milhões de cavalos sem seus homens. E era um reino enorme e detalhado: cada viga de madeira, cada feixe de palha. Tão detalhado que não enumero os pormenores ou enfeites desaguados em arquitetura barroca sedenta de lágrimas. O único indispensável leria o lago. Já mencionei as lágrimas? Lágrimas felinas, se em vez de escorrer das margens saltavam, montavam nos cavalos e os domavam. O estouro mergulhava nas águas puras e se afogava. Consolava. O silêncio como se subsistisse encarcerado em todas aquelas paredes transparentes de vidro.
Cerrou os olhos e gritou o mais alto que pôde, por mais que parecesse insuficiente. Mas o choro lhe engasgava a garganta. Permaneceu sentado e voltou a pensar nos cavalos de quatro patas que acabavam de invadir o reino. A ausência de bravos cavaleiros lhe era perturbadora e humilhante. Como era possível? Voltou a pensar e continuar a criação da incômoda situação. Sem resposta. E assim ficou por horas, esperando que a batalha acabasse e ele, semi-morto, vivenciasse glória, realeza.
Não pôde. Bateram na porta e o fizeram sair sem que pestanejasse. Jante, infeliz! A língua afiada de seu pai estalava. E assim foi feito, e ele comeu seus próprios filhos, e o reino já ruínas. Crianças não conseguem discutir com o pai. Durma! E a palavra relampejou cortando-o, tanto que sangrou. Saiu cambaleando direto para o quarto. Quando se viu só no escuro, levantou-se derrubando o que vinha pela frente e correu em direção ao banheiro.
Sentou-se onde já lhe era de costume e reabriu as páginas. Continuou a desfiar o enredo e desta vez surgiam novos personagens. Havia dias de sol gelados, dias úmidos de nuvens e até mesmo dias de neve fina. Anos corriam monótonos em suas histórias e em seus dias sem sentido, sem solução.
Até o dia em que o pai, figura detestável, agarrou-o com suas palavras em brasa. Todo o rosto do menino foi encoberto pela língua enorme que o enrolava. Arrume um emprego! Os filhos, os pobres filhos, mesmo que jovens (e pálidos e brancos e frios de neve). Os filhos não podem não conseguem não devem discutir com o pai.
Como se não bastasse, sentou-o na grama, à beira do lago, e começou a retirá-los, um por um, cada um dos carrapatos. E a cada puxada, o jovem sentia que não havia mais motivos para separar a ebulição que era antes proveniente na ação externa dos carrapatos da interna, a da necessidade inexorável de criação. Escassez. E o pai engolia os carrapatos de volta. Daria-os para outro, outro que não chorasse tanto. Os carrapatos não gostam de lágrimas: gostam de cabeleiras ruivas esvoaçando.
Momentos depois, o pequeno correu para o banheiro em ação desesperada. Buscava exaustivamente as imagens, cada vez mais difíceis. A nitidez com que tudo acontecia em seu pensamento era avassaladora. Descontrolado, bateu a cabeça na parede. Não uma, mas várias vezes. Voltem! Mas não saía voz nenhuma.
Acordou atordoado e sentou-se ao pé da cama. Nada sabia além de pensar. Banheiro, solidão, silêncio, carruagens e nenhum grito.
O pai o havia traído.

O pai gargalhou mais. E tossiu.
Rolou no chão sem ar, tossindo. Sua língua descontrolada de tão seca, urgia por água. Não resistiu. Foi ao lago e bebeu.
Da barriga do pai um ruído lento subiu, balançando toda sua carne, e dele já giravam os olhos nas órbitas e seus cabelos espetavam em todas as direções. Súbito, parou, estático, e vomitou os carrapatos todos, vomitou umas crianças, e o menino, que já não era mais criança. O velho pai chorou mudo, e se atirou das muralhas daquele reino fantástico, morrendo na frente do local que por tanto tempo aterrorizara.
O menino-adulto se levantou: foi coroado rei por Tebas, rei pelo cosmo, rei pela fala-fogo, rei artista pelos cavalos selvagens, Poseidon.

01.00.00 - Incêndio (Luiza)

Incêndio


Quisera antes; e pudera.
Se depois me fosse confidenciado, eu espalharia. Faria mil pedaços e cortaria em pequenas tiras – daquelas que se medem cuidadosamente. E se ainda que não me fosse permitido, distribuiria. Exatamente como aconteceu.
Assim arrombaram-se os portões e entraram milhões de cavalos sem seus homens. E era um reino enorme e detalhado. Tão detalhado que não enumero os pormenores ou enfeites desaguados em arquitetura barroca típica de lágrimas. O único indispensável leria o lago. O menino observava, porém relapso. Já mencionei as lágrimas? O silêncio como se existisse encarcerado em todas aquelas paredes de janela única.
Andou até a porta da casa e entrou; era sua. Caminhou rumo ao predileto; o ritual. Sentou-se no vértice do cômodo, onde só lhe era permitido ouvir os ruídos distantes dos senhores distantes que distantes passavam em suas carruagens.
A banheira, a latrina, as paredes, a janela, ele e os pensamentos. Onde estavam os óculos? Sem isso, nada.
Cerrou os olhos e gritou o mais alto que pôde, por mais que parecesse insuficiente. Ali ele podia tudo. Permaneceu sentado e voltou a pensar nos cavalos que acabaram de invadir seu reino. A ausência de bravos cavaleiros lhe era perturbadora e humilhante. Como ousavam? Voltou a pensar e continuar a criação da incômoda situação. E assim ficou por horas, até que a batalha acabasse e ele, quase morto, vivenciasse glória.
Não pôde. Bateram na porta e o fizeram sair sem que pestanejasse. Jante, infeliz! E assim foi feito. Crianças não podem discutir com o pai. Durma! E saiu temeroso de punição, direto para o quarto. Quando se viu só no escuro, levantou-se derrubando o que vinha pela frente e correu em direção ao banheiro.
Sentou-se onde já lhe era de costume e reabriu as páginas. Continuou o enredo e desta vez surgiram novos personagens. Havia dias de sol, dias de tempestades e até mesmo dias de neve. Anos corriam em suas histórias e em seus dias.
Até que surgiram os carrapatos. E ele sentia estranhos movimentos entre os cabelos, mas eram tantos pensamentos novos e incontroláveis dentro da cabeça que não conseguia distinguir as sensações. Até o dia em que o pai, figura detestável, pegou a cabeleira e cortou-a sem pudor.
Como se não bastasse, sentou-se na cama, acomodando a cabeça do que antes não passava de um menino entre as pernas e começou a retirá-los, um por um. E a cada puxada, o jovem sentia que não havia mais motivos para separar a ebulição que antes era proveniente da ação externa dos carrapatos da interna, fruto da necessidade inexorável de criação. Escassez.
Momentos depois, correu para o banheiro em uma ação desesperada. Buscava exaustivamente as imagens, cada vez mais difíceis. A nitidez com que tudo acontecia em seu pensamento era precária. Descontrolado, bateu a cabeça na parede. Não uma, mas várias vezes. Voltem!


Acordou atordoado e sentou-se ao pé da cama. Arrume um emprego! Os filhos, mesmo que jovens, não podem discutir com o pai. Nada sabia além de pensar. Banheiro, solidão, silêncio, carruagens e um grito.


Acordou atrasado e vestiu o uniforme. Foi para a fábrica, era o dia de sua promoção. Foi congratulado pelo pai. Passou pelo lago, olhou-o nostálgico. Tentou mensurar quanta inspiração já saíra de lá.


Tudo era divisão; drama.


Entrou no inventário mais uma vez. E foi a primeira que percebeu algo diferente. Podia sentir o barulho emanava de todos os poros de seu corpo proporcionando o momento de felicidade plena. Parecia desmoronar, podia sentir a plenitude do que estava para acontecer. Fogo! Assim que curvou-se para amarrar os sapatos novos, a chama começou a partir de seus pés. Ele achou bonito e se lembrou de remotos momentos da infância em que sentado na pedra próxima ao lago, observava o incêndio, distante, na floresta – e as cores eram tão vivas, tão lúcidas, tão intensas, verdadeiras.
Ergueu-se para visualizar sua imagem no espelho e, deformado, não pôde reconhecer. O mais alto grito de toda sua vida seria resultado da epifania final. Percebeu o erro. Seus leões não tinham sido fortes o bastante para impedir. Sem arrependimentos. Pensou em mergulhar na latrina e ser derrotado pelo ralo.
Não havia tempo, tudo já era chama e o banheiro, moradia de tantos anos, logo não suportaria. Tentou de qualquer forma se concentrar; lembrou-se dos cavalos invadindo o reino, visualizou a ausência de cavaleiros, a humilhação e a glória. Errando de novo. Quando já não pôde mais, havia fogo por toda a casa e em uma fração de segundos, arrebentou a porta de entrada da casa, atingindo o jardim e toda a vila. Instantes depois, cessou: pleno e vazio. Nada mais era além de cinzas - no meio das tantas outras.